[atualização de abril/2022: já não é mais verão, mas o projeto continua. vou ainda postar todas as leituras e poemas dos que me escreveram durante dezembro e janeiro.]
durante o mês de dezembro, esse blog vai abrigar um projeto experimental de poesia, um projeto verão. farei diariamente uma consulta de tarot para amigues e postarei aqui materiais para uma leitura aberta. a ideia é, posteriormente, construir um poema de cada leitura.
você enterrou o riso na grama se escondeu da água, dos regadores, das sementes. manteve os pés nas plantas rentes ao chão como também fizeram os pés de sua avó a soleira sem sol confina poderosos desejos.
a cama, a cômoda fantasmas e tragédias sociais se repetem. o kansas, a klan não podem ser o mundo. ainda há a prenhice do novo.
se você esticar suas pernas na água erguer os olhos do verde vai poder afogar a casa e mergulhar no amarelo-súbito.
Esse poema faz parte do projeto verão. A leitura de luciana se encontra aqui.
uma mulher sobe a rua imune ao alaranjado da tarde aos tufos de cidreira nas calçadas.
crianças e cães cruzam seu caminho rumam para os painéis luminosos que circundam rios, estradas eles acreditam nas luzes na combustão das matas nos aromas doces, vapores quentes que aquecerão a futura noite desejos em néon, eles sonham.
ela é gueixa nos clows a vida e a veste lisa em black novelos de lã tem a memória dos tempos das fiadeiras bibliotecárias do peso das armas dos homens das indústrias de metal o sorriso é curto e a coluna, alta das torres pés nas pedras, ela segue.
o portão, a grade, a casa o bunker ela abre a porta para as xícaras vitorianas a visão cinza a camellia sinensis líquida gótica porque sim porque se safa do brilho, do acaso, as duplas fogos de artifício.
à mesa, sua boca escancara todas os dentes da metrópole.
Esse poema faz parte do projeto verão. A leitura de michelle se encontra aqui.
e continuar aquela conversa que não terminamos ontem
I. sete chaves
Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha grande história passional, que guardei a sete chaves, e meu coração bate incompassado entre gaufrettes. Conta mais essa história, me aconselha como um marechal-do-ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo fogo. Mais um roman à clé? Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna. Nem te conheço. Então: É daqui que tiro versos, desta festa – com arbítrio silencioso e origem que não confesso – como quem apaga seus pecados de seda, seus três monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas.
Ana Cristina César
II. A Joaquim Cardozo
Com teus sapatos de borracha seguramente é que os seres pisam no fundo das águas.
Encontraste algum dia sobre a terra o fundo do mar, o tempo marinho e calmo?
Tuas refeições de peixe; teus nomes femininos: Mariana; teu verso medido pelas ondas;
a cidade que não consegues esquecer, aflorada no mar: Recife, arrecifes, marés, maresias;
e marinha ainda a arquitetura que calculaste: tantos sinais da marítima nostalgia que te fez lento e longo.
João Cabral de Melo Neto
III.
Enfants, gare de marchandises, 13ème arrondissement, Paris – Sabine Weiss
Quero acordar cedo mais uma vez, antes do sol. Antes até dos pássaros. Quero jogar água fresca no rosto e estar na minha mesa de trabalho começar a subir das chaminés das outras casas. Quero ver as ondas quebrarem nesta praia rochosa, não apenas ouvi-las quebrar como ouvi a noite inteira, enquanto dormia. Quero ver de novo os navios que passam pelo Estreito, vindos de todos os países do mundo – cargueiros velhos e sujos que avançam lentamente e os modernos navios mercantes, velozes, pintados de todas as cores sob o sol, cortando a água ao passar. Quero ficar de olhos neles e nos barquinhos que cruzam a água entre navios e a estação de controle junto ao farol. Quero ver descerem um homem do navio e trazerem outro a bordo. Quero passar o dia vendo isso acontecer e tirar minhas próprias conclusões. Odeio parecer ganancioso – já tenho tanto pelo que ser grato. Mas quero acordar cedo mais um dia, pelo menos. Ir para o meu canto com um café, e esperar. Apenas esperar, para ver o que acontece.
o amor começa no segundo ato quando se atravessa a rua para afanar o cão e cozinhar tigelas de favada a desconhecidos
as distinções, as dominações, o colorismo arrebatam a pele e as mãos entre o cinza e a desordem dos prédios gemem com os ossos tenros em ruas sem orientação
se você sujar os pés na cozinha contaminar-se do pó do coentro pode aprender o duplo cantar na ponta espaldada das favas
Esse poema faz parte do projeto verão. A leitura de bruno está aqui.
bojudo seio reverso de finas paredes em azul-poeta guarda mariscos rochas corais o pouso frio das mãos digitais femininas que buscam a temperatura tropical
os olhos cortinam distantes quanto a luz do sol lhe atravessa em êxtase
Soou o telefone na galeria de arte, soou à meia-noite na sala quieta; se houvesse gente dormindo, acordaria na certa, mas aqui há somente insones profetas, somente reis empalidecem de luar e olham indiferentes o que há para olhar, e a mulher do usuário, agitada na aparência, fita justo essa coisa sonante na lareira, mas não, não larga o seu leque, como os outros aferrada à sua inércia. Altivamente ausentes, em ricas vestes ou nus, tratam o alarme noturno com indiferença, na qual, juro, há mais negro humor do que se da moldura saltasse o próprio mordomo-mor (nada além do silêncio, aliás, lhe soa ao ouvido). E o fato de que alguém na cidade, há longos instantes, se afana segurando ingenuamente o receptor tendo discado um número errado? Ele vive, logo se engana.
[…] No necesito comprar, ni drograrme, ni contaminar el planeta usando walkmans a pilas, ni votar por un presidente dispuesto a reformar el Estado, ni distinguirme socialmente de los demás. No tengo ningún interés en el salario universal. La contemplación de las obras de arte acaba com las diferencias de clase y com as inseguridades personales. Además, los espectadores son parte de la obra en la misma proporción que los artistas. Al menos eso leí en una revista de sociología inglesa, y lo encuentro muy cierto y muy alentador. Es mucho más importante ser parte de una obra de arte que de una sociedad, porque las obras de arte están hechas de sueños y los sueños no tienen copyright.
Cecilia Pavón, Los sueños no tienen copyright
V. Praça da República dos meus sonhos
A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem de morfina a praça leva pontas aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincado na tarde de esterco Praça da República dos meus sonhos onde tudo se faz febre e pombas crucificadas onde beatificados vêm agitar as massas onde García Lorca espera seu dentista onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces os meninos tiveram seus testículos espetados pela multidão lábios coagulam sem estardalhaço os mictórios toma um lugar na luz e os coqueiros se fixam onde o vento desarruma os cabelos Delirium Tremens diante do Paraíso bundas glabras sexos de papel anjos deitados nos canteiros cobertos de cal fumegante nas privadas cérebros sulcados de acenos os veterinários passam lentos lendo Dom Casmurro há jovens pederastas embebidos em lilás e putas com a noite passeando em torno de suas unhas há uma gota de chuva na cabeleira abandonada enquanto o sangue faz naufragar as corolas Oh minhas visões lembranças de Rimbaud praça da República dos meus Sonhos última sabedoria debruçada numa porta santa
é bonito ver as crianças correndo ao longo do gradil, os braços como asas de avião e as mãozinhas vão tocando cada aresta verde, barulhando tuc tuc tuc, os lábios frouxos brum brum brum e o riso columbino. os olhos agarram os limites dos portões, dos jardins, belos e soltos, e lá se vai o trinco, o susto, começa a nova expedição. filinha, gritinhos, shiiiiiiii e a certeza da bruxa no porão fica até o pulo da perereca em flagrante e a vida é gritos e corrida sem fôlego à calçada. ufa ufa ufa mãozinhas nas pernas, o sangue nas bochechas e a revelação dos segredos florestais que só tinham sonhado nos filmes. toda noite é uma promessa que você enfileira em galerias de fotografias e banhos de luz colhidos e preservados com as garras sábias de quem conhece os horizontes. quando se tem belas pernas, ainda se pode esticar um braço ao gradil e ter o outro firme sobre o papel brilhante que tem a magia do cinema. com a máquina em punho, será possível captar os saltos das rãs se as fronteiras forem esquecidas. aí dizem que se ouve a voz da bruxa e o sangue esquenta. os dados não mostram sua face sem que você anuncie sonoramente sua aposta. ninguém nega que a banca vence, mas, às vezes, a sorte te encontra inocente na encruzilhada. um pouco de dinheiro, um pouco de criança, um pouco de cachaça, tudo bem mexido no tacho de ferro e bastará girar os braços como asas para pousar nas imagens que a câmara escura sonhou.